Nota de Abertura
A construção de instrumentos e a procura de novos meios de expressão musical é tão antiga quanto a música. A história da música é também a história da descoberta de novos sons, de novas formas de produzir e combinar sons, de novas formas de interagir com objectos e pessoas no sentido da construção de canais de comunicação e expressão que usam o som como meio ou matéria. Muitos dos instrumentos que existem actualmente são autênticos prodígios do desenvolvimento tecnológico e o resultado de centenas de anos de evolução e pesquisa. Não obstante se ter atingido a “perfeição” em muitos casos e termos um número imenso de instrumentos ao nosso dispôr, a nossa necessidade de criar mais recursos parece ser infinita e muito maior do que a nossa satisfação, e por isso continuamos a inventar e procurar. Existe hoje um número crescente de projectos de investigação dedicados à criação de novos interfaces de expressão musical e o imenso potencial criado pelo desenvolvimento tecnológico está apenas a começar a ser explorado. Paralelamente, crescem os projectos de construção de instrumentos acessíveis, que se podem fazer na escola ou em casa. Ou seja, estamos numa altura em que há pessoas a criar instrumentos electrónicos sofisticadíssimos para que seja possível fazer música a partir das ondas do cérebro, ao mesmo tempo que outras pesquisam nas lixeiras objectos com que constroem esculturas sonoras ou instrumentos análogos aos que se usam nas orquestras. O que se passa então? Há algo de errado com as flautas de bisel, os violinos, os instrumentos Orff ou os pianos? Quais as razões que nos levam a continuar a investir na criação e construção de instrumentos, quando seria bem mais fácil comprar um ou vários já feitos?Nota Breve
Há
várias razões para querer construir instrumentos como os de Super-Sonics. Uma
delas, não a mais importante, é o custo. Os projectos que apresentamos são
muito económicos, mas cada vez é também mais barato comprar instrumentos
convencionais. É um factor importante, porque significa que este tipo de
projecto não é limitado pelo custo. Poderá ser até em várias circunstâncias um
factor determinante (muitas escolas não possuem os recursos necessários para
comprar instrumentos convencionais) mas não deverá ser essa a principal
motivação. Ou seja, não se deve esperar que este tipo de instrumentos produzam
o mesmo tipo de sons que outros instrumentos, embora possa haver muitas
semelhanças. Um “piano preparado” não é a versão económica dum piano
convencional, um “metalofone” feito com medalhas não é um metalofone Orff a
preço de saldo, da mesma forma que um “ribombador” ou um “rugidator” não é um
subsituto duma trovoada ou dum leão. Estes projectos são económicos e têm
identidade própria e um imaginário muito especial. Tentar obter os mesmos
resultados sonoros que outros instrumentos convencionais produzem pode não ser
a direcção mais interessante, e o mesmo se aplica à estética musical e à música
em si mesma: a música que foi construída para instrumentos convencionais soará
quase sempre melhor nesses instrumentos. Isso não invalida o interesse em
experimentar o cruzamento dos dois mundos, e a nossa experiência tem mostrado
que há um universo onde eles se interseccionam que é deveras estimulante
explorar. Chamamos apenas a atenção para o facto de que novos instrumentos ou
novos sons parecem muitas vezes querer também nova música.
Nota Longa
A
questão da “nova música” emerge assim como uma das razões substanciais para que
se construam novos instrumentos. Estar interessado em “nova música” não
significa, contudo, estar desinteressado em música que já existe. Pelo
contrário, muitas vezes esse interesse alicerça-se numa profunda curiosidade em
saber mais e perceber o porquê do apelo de muita música que ouvimos. Ou seja,
para gostar do som do “gamelão de porcelana” ou dos “bambus” não temos que
deixar de gostar do som do cravo, do piano ou das Variações Goldberg de Bach ou
das vozes alentejanas no Não Quero Que Vás À Monda. A designação “nova música”
é usada aqui, bem como muitos outros conceitos, duma forma muito aberta e
descomplexada. Não significa uma corrente da “música contemporânea” (aquela
música que descende da tradição erudita e que supostamente é actual, mesmo que
não encontre reverberação em quem a ouve ou faz). Significa apenas a música
nova, a que se faz de novo, a que se cria a partir daquilo que os recursos
sonoros e as pessoas disponíveis permitem. Nesse sentido tudo pode acontecer em termos
estritamente musicais, ou seja, a “nova música” pode ser muitas coisas
diferentes: não tem que ser “dissonante”, não tem que evitar a pulsação, mas
também pode sê-lo e muito mais ou muito menos. Ou seja, não tem que “não-ser”
para ser. Não precisa de se afirmar como uma ruptura ou uma revolução
relativamente a outras músicas. Existe porque sim, porque emana directamente
dos sons que os instrumentos produzem e daquilo que eles provocam nas pessoas
que os tocam (que obviamente estão carregadas de referências). Sendo assim, a
“nova música” envolve um processo de escuta e comunicação profundo, não é algo
que se imponha, é algo que se quer fazer acontecer. Há vários factores que
podem potenciar uma relação frutífera a este nível, e nesse sentido estes
instrumentos podem ser de facto potenciadores. Os instrumentos que apresentamos
têm frequentemente características tímbricas e de afinação peculiares e
envolvem algumas formas de manipulação e de relação com outras pessoas que
também diferem em vários pormenores relativamente a instrumentos convencionais.
É nesse território de novidade que muitas vezes se encontram as pistas para a
música que parece fazer sentido emergir daquele instrumento em particular.
Esta questão é especialmente importante quando se trabalha com adultos, e em particular
com músicos. Muitas vezes observámos a “tradução directa” de determinados
paradigmas musicais a que os adultos estão habituados para um instrumento que
tem características que parecem “pedir” outro tipo de música. Por várias vezes
vimos que uma primeira abordagem a uma carcassa de piano preparada dentro da
lógica do projecto “piano preparado” passava por uma espécie de “kizomba” que
soaria infinitamente melhor nos instrumentos para que foi desenvolvido. Ou
seja, a “nova música” requer “ouvidos frescos”, não só para os sons mas também
para os outros, para aquilo que está a surgir. Sendo assim, a palavra “escuta”
é deveras importante e designa a atenção que é necessária prestar não só ao som
mas também à intenção. O propósito é potenciar o surgimento de algo que parece
emanar naturalmente da relação que se estabelece entre as pessoas e o som.
Notas Soltas
Há
um outro conjunto de razões para se fazerem projectos de construção de
instrumentos que não são de natureza estritamente musical, mas sim ética ou
educacional. Esta visão “ocidentalizada” de que a música existe “per se” e pode
ser dissociada dum conjunto imenso de factores sociais e biológicos, não é a
nossa visão, mas um exercício
“mecanicista” pode contribuir para esclarecer esse lado importante deste tipo
de projectos que fazem com que a música seja o pólo de articulação de vários
aspectos importantes da nossa relação com o mundo e com os outros. Os projectos
de construção de instrumentos fortalecem o sentido de identidade das
comunidades com que se trabalha. Ao construir algo que é feito “à medida” não
só se possibilita uma adequação real entre indivíduo e instrumento (é um caso
particularmente relevante com pessoas que por uma razão ou outra são um pouco
diferentes da norma) como se aprofundam os laços e a cumplicidade entre as
pessoas que participam no projecto. A construção de instrumentos está presente
em muitos projectos de música na comunidade porque é um processo de “afinação”
entre indivíduos, de coesão, de inclusão, de promoção da auto-estima porque
existe um resultado funcional que é fruto do trabalho e empenho de todos. A
facilidade com que hoje em dia compramos um instrumento convencional
afastou-nos muito dum conjunto de rituais que faziam parte da natureza e do
papel da música em tempos mais afastados. Continuamos, contudo, a ver isso
nalgumas sociedades tradicionais em que a construção dum tambor é parte do processo
de constituição duma nova família, duma nova casa, e é acompanhada por um
conjunto de rituais que celebra a relação próxima com a natureza e a
comunidade. Há, assim, talvez, um lado “espiritual” envolvido neste tipo de
projectos que remonta aos primórdios da música enquanto actividade de promoção
de “togetherness”. Podemos não estar conscientes disso, ou pode esta ideia ser
uma especulação, mas o nosso trabalho com comunidades tem-nos feito pensar que
muitas das razões que fazem com que a música tenha perdurado e explicam o nosso
fascínio pela música têm a ver com a sua capacidade de ser um factor de coesão
social. Uma questão muito importante no tipo de projectos que propomos é a
questão da acessibilidade: não é preciso ser músico nem passar por um processo
moroso de aprendizagem para tocar nenhum dos instrumentos com resultados
interessantes. Por outro lado, procurámos construir ideias que tenham potencial
para ser aprofundadas e que não se esgotem rapidamente. Ou seja que tenham
potencial para aprendizagens significativas e que passem para lá do
entretenimento.
Nota Curta
Uma
outra questão importante na construção de instrumentos e no lidar com recursos
sonoros não-convencionais é que estes projectos são um terreno especialmente
favorável para um “aprender fazendo”. Ao depararmos com um instrumento que tem
que ser construído temos oportunidade de observar detalhes e questionar
mecanismos que normalmente não abordamos quando se aprende um instrumento
convencional. São poucos os professores de piano que explicam aos alunos como
funciona o instrumento, que o abrem e lhes mostram o mecanismo, que lhes fazem
experimentar as cordas e o que acontece quando os martelos as percutem, ou
quando os abafadores as param de vibrar, os harmónicos que produzem, ou como se
afina o piano. Perdem-se, assim, oportunidades de abordar aspectos importantes
da física, nomeadamente da mecânica e da acústica, e da matemática. A música, e
a construção de instrumentos em particular, é um terreno experimental
extremamente interessante e tem a vantagem de permitir combinar aspectos
cognitivos, emocionais e lúdicos.
Nota Final
Um
último argumento, talvez o mais básico: a construção de instrumentos é
divertida e aprende-se algo com isso. Basta pois, e mãos à obra, a música está
à espera.